O ilustrador maravilhoso e sua fantástica mão de pau (crônica)
O rapaz era um estudante recém matriculado em uma das mais renomadas
escolas de artes visuais do mundo. Grandes nomes da arte narrativa
haviam passado por aqueles ateliês e outros eram agora membros do
corpo de professores e estavam ali para manter acesa a tocha da
ilustração.
A escola ocupava o segundo andar inteiro de um prédio antigo no bairro
do Chelsea. O espaço era amplo e fracionado por divisórias que
atingiam apenas meia altura do altíssimo pé direito. Distribuídos
entre três corredores, estavam diversos cubículos individuais de 2 X 2
metros, cada qual equipado com um cavalete ou prancheta de desenho,
uma pequena estante para guardar livros, materiais e ferramentas do
aluno, e também uma luminária com 2 lâmpadas (uma quente e a outra
fria). O silêncio que reinava era apenas uma aparência enganosa. Na
verdade quase todos os estudantes estavam imersos em seus mundos
particulares sob o ronronar da música dos seus headphones.
A sala do diretor situava-se próxima aos elevadores de serviço e, com
sua grande vidraça, parecia-se bastante com aqueles “aquários” típicos
de redações de jornais. A decoração era peculiar e sem excessos. As
máscaras dependuradas na parede já haviam testemunhado muito choro e
ranger de dentes, já que os estudantes faziam daquele espaço o
purgatório de suas inquietações e inseguranças. Reuniões privadas ali
eram frequentes e o diretor, por sua vez, sempre terminava aquelas
longas conversas com um sorriso amplo e a frase-feita: “não tenha
medo, just follow your bliss”.
No inverno, o parapeito da janela da escola servia de apoio para
fileiras de garrafinhas de cerveja que os estudantes colocavam ali
para gelar ao relento. Eles haviam aprendido isso com o próprio
diretor que costumava deixar o seu Jack Daniel’s para fazer companhia
aos pombos. Ocasionalmente à noite pequenos grupos de estudantes
reuniam-se junto aos janelões pivotantes do segundo andar para bater
um papo e enxaguar as palavras com uma Bud bem gelada. A escola não
tinha hora pra fechar e todos os alunos possuíam sua própria chave da
porta.
O rapaz que é protagonista desta história era um cara meio esquisitão.
Chegava cedo no estúdio e, bastante reservado, seguia direto para o
seu cubículo e logo fechava atrás de si a cortininha de plástico que
servia-lhe de porta. Ele não ligava muito para aquelas rodinhas de
bate-papo junto ao parapeito da janela. “Vim aqui para me tornar um
grande ilustrador, e não para fazer amigos”, dizia para si com certo
orgulho. Ele era de fato um sujeito bastante aplicado e tinha seu
panteão pessoal de ídolos, todos ilustradores “das antigas”. Mas a
mais brilhante estrela do seu firmamento de heróis tinha nome e
sobrenome: Bob Peak.
Dentro do minúsculo atelier do rapaz as paredes refletiam aquela
adoração. Não havia espaço ali que não estivesse coberto por
reproduções, estudos e esboços baseados na obra do seu ilustrador
favorito. O garoto queria saber tudo, absolutamente tudo sobre Bob
Peak. Era mais que uma reverência ou admiração. Ele era simplesmente
obcecado por Bob Peak.
Toda quinta, religiosamente, o estudante fechava a cortininha do seu
micro ateliê, e saía de metrô a garimpar pela cidade nos sebos e
livreiros de calçada pelas 7 revistas Time que finalmente completariam
a coleção de 45 capas ilustradas pelo seu artista favorito. Os posters
de cinema ele os tinha todos: “My Fair Lady,” “Camelot,” “Rollerball,”
“Star Trek,” “Superman”, “Excalibur”, “Apocalypse Now” e o mais
recente “O Corcel Negro”. O garoto se orgulhava de possuir também a
coleção completa com os 30 selos das Olimpíadas e também aqueles
editados durante os Jogos de Inverno de Sarajevo, ambos da “safra” de
1984.
“Bob Peak é incrível” o rapaz dizia, “…como é que ele fez para
conseguir aquele brilho quase mágico na face do Spock no cartaz de
Star Trek?” perguntava aos professores. “E aquela Madre Tereza da
Time? Foi em acrílica ou aquarela? Qual é marca de tinta que ele usa?
E a do pincel?” insistia ele. “Como o Bob Peak consegue aquele
resultado? Como é a técnica dele, por onde ele começa e como
termina?”, eram muitas perguntas, muitas vezes repetidas para
professores diferentes, para que o rapaz pudesse comparar as
respostas. Seus professores já não aguentavam mais ouvir aquele disco
arranhado que tantas vezes repetia Bob Peak pra lá e Bob Peak pra cá.
O diretor da escola já estava um tanto cansado daquela obsessão do
rapaz, e resolveu chamá-lo para uma conversinha particular em sua
sala.
No dia e hora combinados o garoto abriu a porta do aquário do mestre,
pediu licença e sentou-se um tanto encabulado na cadeira de couro
surrado. Seu olhar deteve-se por alguns segundos na fileira de cinco
máscaras penduradas na parede. Dois pequenos pregos despontavam, um no
início e outro ao final da sequência de caras de madeira, cerâmica e
papier maché. Por menos de um segundo o garoto teve a impressão de que
as máscaras pareciam fitá-lo com um leve sorriso de sarcasmo. Logo
abaixo delas estava a face da pessoa sentada à sua frente, que disse:
“Chamei você aqui porque precisava conversar privadamente sobre um
assunto que poucos sabem, e que, acredito eu, vai lhe interessar
bastante”
O estudante sentiu-se muito importante por ter sido escolhido para
guardar um segredo do diretor.
“Você gosta muito do Bob Peak, não é verdade?”, disse o homem de pouco
mais de 60 anos.
Ao ouvir o nome de seu ídolo, o jovem aprumou-se de imediato na
cadeira. “Sim, sim, muito!”
“Talvez você saiba que eu o conheço pessoalmente…”, a voz do diretor
veio quase em tom de confidência.
“Nossa, você já conversou com o Bob Peak?”, o estudante exultou.
“Ô, claro, muitas vezes! Sempre o encontro nos coquetéis da Sociedade
dos Ilustradores, em eventos do Art Director’s Club etc. É um cara até
bem acessível..”
“Incrível! Poder trocar umas palavras com Bob Peak… quem me dera!.”
“Chamei você aqui justamente porque sei o quanto você é fã da obra
dele e, por isso, terá total interesse no que eu tenho para lhe dizer
”, sorriu o diretor.
O garoto estava atento.
Levando a mão ao canto da boca o diretor disse à ele em tom baixo “Bob
Peak tem um segredo que poucos sabem, e que vou revelar-lhe
simplesmente porque sei o quanto é verdadeira a sua admiração pela sua
obra e o quanto você deseja ser tão bom quanto ele”
O estudante prendeu a respiração.
“Percebo que você frequentemente quer saber detalhes sobre a técnica
do Bob, as marcas dos pincéis que ele usa, as tintas, etc e etc.
Deixe-me lhe dizer uma coisa rapaz, estas suas perguntas estão um
tanto fora de foco, sabe? Preste atenção pois, na realidade, as
respostas para elas não irão trazer grande diferença no seu
trabalho…“
O garoto era todo ouvidos.
“Pois bem, o que tenho a lhe dizer é o seguinte: Bob Peak só consegue
pintar daquela maneira porque possui uma mão de madeira.”
O estudante sentiu o sangue abandonar sua face. “C-como assim uma mão
de madeira?”.
“Sim, exatamente o que acabei de lhe dizer. Uma mão de pau. Mas não
pense que se trata de uma prótese perfeita, daquelas biônicas, cor da
pele e com dedos e movimentos quase naturais. Diria na verdade que
trata-se de uma mão até bem tosca…” disse o diretor olhando
fixamente para a palma da própria mão enquanto abria e fechava os
dedos, como uma anêmona.
“Céus, como nunca soube disso? Ele perdeu a mão como??”
“Bem, isso eu não sei ao certo, parece que foi na guerra da Coréia,
mas confesso que não tenho certeza. O fato é que poucos sabem disso
porque ele mantém essa mão no bolso durante ocasiões sociais…”
O menino parecia confuso com aquela revelação. O diretor continuou:
“Pois saiba você meu rapaz, é justamente aquela tosca mão de pau a
principal responsável pela qualidade do trabalho dele. E lhe conto
mais, ela foi inclusive entalhada sem os dedos, porque o Bob preferiu
fazer uns furos de diversos calibres para encaixar seus pincéis,
lápis, penas, enfim, quaisquer ferramentas necessárias numa arte
final.”
“Mas como ele pode criar ilustrações tão incríveis com uma… mão de
pau?”, irrompeu o garoto em um tom de voz mais alto do que o normal.
“Claro que a prótese dele não é tudo.” falou muito serenamente o
diretor, “ O que conta mesmo é o movimento que ele faz ao desenhar,
que é tipo uma, digamos, uma oscilação harmônica que sai do ombro,
percorre o cotovelo, gerando um fluxo de movimento intuitivo, feito um
“swoosh” sabe?” disse muito seriamente enquanto seu braço fazia no ar
movimentos dignos de uma bailarina de O Lago dos Cisnes.
O garoto acompanhava aquilo com olhos atônitos. O diretor
empolgava-se. “E esse “swoosh” meu caro, é uma técnica que, ao longo
dos anos, Bob passou a dominar e a usar a seu favor. É como se
evocasse o Kundalini latente nas articulações e nervos do braço como
um todo… Com aquela mão ele não precisa mais contar com os
movimentos curtos dos dedos e do pulso, como a maioria das pessoas
faz, compreende?”
O menino ouvia sem piscar, em completo silêncio.
“Bem, esse era o assunto do qual queria tratar com você nesta
reunião”, o diretor falou enquanto organizava uns papéis sobre um
canto da mesa. “Agora acho que você deve voltar ao seu cubículo e de
uma vez por todas aceitar que o seu trabalho não precisa e nem pode
ser igual ao de Bob Peak, afinal, ele tem algo que você não tem”.
Olhou fixamente para o estudante.
O garoto levantou-se e, antes de sair pela porta disse um “obrigado”
quase inaudível. Estava mergulhado profundamente em pensamentos
confusos.
A tarde arrastou-se no pequeno cubículo do jovem artista. Ele
analisava com uma lupa as reproduções do trabalho do seu ídolo, desta
vez com um novo olhar que buscava avidamente compreender o tal “swoosh
de Kundalini” de que havia falado o diretor. Perdia-se nos pontos de
retículas daqueles impressos, forçava a retina em busca da energia que
fluía de cada gesto do pincel de Bob Peak. Dentro de si ele sentia
que, com muito treino, poderia até fazer da sua mão de carne e osso
uma ferramenta tão boa quanto a mão tosca e artificial do seu ídolo.
Ele tentou então desenhar segurando o lápis entre os dedos como se
fosse um cigarro. Aquilo durou semanas de tentativas laboriosas e
desajeitadas. A qualidade do seu trabalho caiu bastante, mas ele
seguia com a certeza de que, com treino, alcançaria seus objetivos.
Ninguém na escola poderia imaginar a batalha que era travada dentro
daquele pequeno cubículo.
Um dia, o rapaz resolveu que tinha que entalhar uma mão de pau para
compreender exatamente como Bob Peak trabalhava. Foi então à uma
marcenaria na rua 21 e adquiriu uma peça de angelim, além de goivas,
formões e lâminas novas para estiletes. Após uma laboriosa semana de
trabalho, seu protótipo foi testado e logo logo demonstrou completa
ineficácia em segurar firmemente os pincéis. O rapaz até tentou sanar
o problema usando esparadrapos e colas, mas nada daquilo adiantou. “A
mão de Bob Peak pode ser tosca, mas jamais teria esparadrapos e
colas”, pensou.
Uma segunda tentativa de entalhar a mão de madeira durou mais de uma
semana de trabalho exautivo que, novamente, resultou em fracasso. Com
câimbras nas mãos, exausto e frustrado, o jovem deixou-se cair sobre o
chão coberto de lascas de madeira e adormeceu olhando para as pás do
ventilador de teto. Sonhou então que suas mãos de carne e osso
possuíam furos de diversos diâmetros, através dos quais podiam-se ver
tendões, veias e nervos a pulsar com uma energia luminosa e multicor.
Os orifícios tinham suas bordas perfeitamente cicatrizadas e permitiam
que ali se acoplassem pincéis, lápis e canetas, sem que estes
produzissem qualquer dor ou dano. O artista entusiasmou-se ao perceber
que conseguia realizar no ar movimentos harmoniosos que fluiam dos
cotovelos aos ombros, como uma dança hipnótica, sentiu enfim que podia
fazer o tal “swoosh” do qual havia falado o sábio diretor.
O sonho era bastante real mas, para sua surpresa, as pinturas que sua
mão produzia não se pareciam em nada com aquelas de Bob Peak. Elas
eram de fato bastante ruins, talvez as piores que ele já havia feito
ou visto até então. O rapaz começava a se desesperar com aquela visão
e já até podia ouvir gargalhadas diante das suas inúteis tentativas em
pintar como o seu idolo.
Repentinamente ele abriu os olhos e, reconectando-se com a realidade,
notou que as gargalhadas continuavam lá. Já era noite de sexta e seus
colegas estavam, como de costume, reunidos junto ao janelão da escola,
tomando cerveja e papeando. Pelo relógio ele viu que eram 10 horas da
noite. Levantou-se e, num salto esbaforido, sacudiu as lascas de
madeira que estavam grudadas em seu cabelo, pegou seu casaco e mochila
e dirigiu-se à porta de saída. Aquela foi a última vez em que foi
visto no ateliê.
A mão de pau de Bob Peak por muito tempo tornou-se uma piada entre os
estudantes que frequentavam aquela escola. Hoje, a sala do diretor tem
penduradas em sua parede, além das máscaras, duas belas mãos de
madeira que o jovem artista fã de Bob Peak abandonou para trás em seu
cubículo.
possuiu uma mão de pau.