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Narrativas ao redor do fogo eletrônico (parte 2)

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Narrativas ao redor do fogo eletrônico (parte 2)

Os primeiros livros de nossas vidas são livros de imagens e eles trazem pessoas, animais, casas, máquinas, famílias, aventuras, sonhos. Neles podem estar os sistemas simbólicos de uma comunidade, seu imaginário coletivo, seu panteão de mitos, lendas e heróis. Experimentamos em sua leitura sentimentos de empatia, inquietude, tristeza, segurança, maldade, bondade, enfim todo o espectro que nos faz humanos.

Em grande medida, são estes livros que ajudam a criancas a criar sua propria imagem do que seja a vida e o mundo.

“Esquecemos os livros que lemos quando adultos, mas as histórias da infância deixam em nós uma marca indelével; guardamos seus autores em um nicho no templo da memória, as imagens jamais descartadas no monturo de coisas sem significado que acumulamos afora pela vida adulta”*

*Howard Pyle – ilustrador

Nesta era contemporânea o ambiente das crianças mudou drasticamente. Como alvos de um marketing agressivo disfarçado sob aparências sentimentais e açucaradas, elas são bombardeadas com informações e “petiscos” visuais que as fazem cair prostradas passivamente diante de seus artefatos tecnológicos, como reféns de seus próprios desejos de consumo ou até mesmo pela ansiedade em viver dentro daquele universo projetado pela mídia eletrônica.

Há fartos registros de relatos de antropólogos que descrevem a dificuldade de alguns indivíduos de culturas primitivas em reconhecer imagens impressas, desenhos e até mesmo fotografias ou videos. A fotografia de uma banana, por exemplo, não suscita em um aborígene qualquer leitura sensível ou racional, pois aquela imagem impressa não traz em si o volume, a textura ou o cheiro da fruta. Fica óbvia assim ideia de que , como parte de um sistema de significados, a representação visual também exige aprendizado.

A ilustração na página do livro guarda em si uma existência e uma razão de ser que não pode ser dissociada das outras ilustrações que lhe precederam e, logicamente, das demais que lhe dão sequência.  Sozinhas elas representam ações e narrativas incompletas. Juntas, formam um corpo narrativo unificado e carregam consigo o espírito ou a aura do texto que as originou.

A paleta de cores numa ilustração pode sugerir o clima de uma história, seus cenários nos situam no tempo e lugar, as personalidades de personagens podem ser adensadas por cada detalhe significativo acrescentado naquela imagem ilustrada…  Estaríam os nossos jovens leitores atentos a tudo isto? Será que eles possuem instrumentos, aprendizados que os habilitem a realizar a completa fruição destas imagens?

Ler imagens é uma competência que se aprende e, partindo desta premissa, o oposto do aprendizado, ou seja, seu puro e simples esquecimento pela falta de uso, é também uma possibilidade a ser aventada. Nesse sentido, exercitamos aqui, não sem alguma preocupação, nossa análise e observação do contexto atual, das crianças hiperconectadas, neste mundo eletrônico, digitalizado.

Já é possível notar mudanças em curso. Está na forma como lemos textos digitais, seus hiperlinks, a expansão dos conteúdos em novas janelas… Aquele antigo momento de respiro da leitura, o virar da página (quem nunca passou o indicador na ponta da língua?), agora é um rápido deslizar de dedos na tela, e lá se vão videos, música, imagens em movimento.  Adultos e crianças, conforme as pesquisas apontam, já manifestam sinais de que a qualidade de sua atenção, de retenção de conteúdo, e, sobretudo do tempo dedicado a uma boa leitura, ficaram resumidos a um fino verniz. Será que desaprendemos alguma coisa importante?

Ao divagar o pensamento com intenções premonitórias sobre o futuro das narrativas por meio das imagens ilustradas, especificamente aquelas situadas de forma sequencial no espaço entre as duas capas de um livro infantil, uma pergunta insiste em se fazer notar: haverá futuro possível para elas na competição com as outras formas de narrativa que hoje inundam o cotidiano das crianças?

Paradoxalmente, o uso crescente e expandido destes meios tecnológicos em todos os níveis, tem projetado um movimento inverso em direção a valores enraizados nas mais profundas tradições humanas.

Percebe-se uma forte retomada de aspectos inerentes ao “low tech”, do que é intrínseco ao “fazer com as mãos” (do pão à arte analógica), a valorização das coisas e ideias que crescem ou que evoluem em um tempo natural de maturação. Por mais conectados que estejamos, seguimos sendo esta espécie curiosa,  que aprende através de histórias, que pensa e conecta metáforas, imagens, que regozija-se ao redor do fogo.

É importante agora, propiciar a estas novas gerações uma alternativa, um terreno fértil, um recorte no tempo apressado do cotidiano, um espaço que possa dar alento a novas formas de pensar, fazer com que tragam à tona novos questionamentos e sobretudo, seguir apresentando às nossas crianças, narrativas,  histórias e imagens que fortaleçam os pontos de conexão entre o mundo imaginativo e o mundo real.

Como atores sociais que controlam e são controlados pelo mundo ao redor delas, as crianças, têm sua percepção liberta da bagagem de convenções culturais e sociais. Parece-nos urgente hoje fazer algumas correções na rota que assumimos ao longo do século, trabalhar para uma mudança na concepção da educação delas, talvez até guiar-nos por um novo manifesto, certamente com aspirações tão humanistas e revolucionárias quanto aquele que Ellen Key publicou em 1900.

Talvez no futuro não fará diferença alguma se os pequenos estarão usando livros de papel, tablets eletrônicas,  ou qualquer outra invenção, já que, o que valerá mesmo, será a qualidade das histórias, a força das imagens, enfim, as narrativas, por imagens ou palavras, capazes de deixar marcas indeléveis em nossa  memória afetiva.

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