Narrativas ao redor do fogo eletrônico (parte I)
“ … if only one person out of a hundred and fifty million should continue as a reader, he would be the one worth saving, the nucleus around which to found a university. We think this not impossible person, this Last Reader, might very well stand in the same relation to the community as the queen bee to the colony of bees, and that the others would quite properly dedicate themselves wholly to his welfare, serving special food and building special accommodations. …”
“(…) mesmo se apenas uma pessoa em 150 milhões continuasse sendo um leitor, ela seria quem valeria a pena salvar, o núcleo ao redor do qual se fundaria uma universidade. Achamos que esta pessoa não tão impossível, o Último Leitor, poderia muito bem ter para com a sua comunidade o mesmo tipo de relação que uma abelha rainha tem com a sua colméia, e que os demais dedicariam-se diligentemente a cuidar do seu bem estar, servindo-lhe comida especial e construindo para ela acomodações especiais…”
Aquela preocupação manifestada pelo escritor e ensaísta americano E.B. White há mais de 50 anos atrás parecia premonitória. Em escolas e universidades, nestes tempos de revolução da comunicação, muita dúvida tem surgido acerca do futuro da leitura, dos livros e se a palavra impressa – e mesmo a imagem ilustrada – está a apoiar-se sobre suas últimas pernas.
Afinal, no futuro quem irá ler todas estas histórias que criamos? O que será feito dos nossos desenhos?
“O livro é a prova de que os humanos são capazes de fazer mágica” disse certa vez com admiração, Carl Sagan, o astrônomo, em sua celebrada série de TV, Cosmos.
Conforme também assinalou Arthur Clarke, conhecido autor de ficcão científica, muito devemos a esta grande invenção humana:
“Compactos, portáteis, capazes de armazenar dezenas de milhares de palavras, e sem necessidade de qualquer fonte externa de energia para funcionar, os livros são uma ferramenta de informação do futuro e também do passado.”
Clarke morreu dois anos antes do lançamento do I-Pad, o “livro digital” da Apple Computers, uma invenção cujo conceito ele anteveu com surpreendente precisão em seu romance “2001 Uma odisséia no espaço”, publicado em 1968. Se antes, na ficção, aqueles artefatos eletrônicos tinham o nome de Newspads e serviam para leitura de documentos digitais, hoje eles são conhecidos pelo nome genérico de tablets, e assumem funções que vão muito além das palavras.
Como possuem conexão com a internet, estas novas gerações de livros digitais já extrapolaram em muito sua promessa inicial, que era a de abarcar bibliotecas inteiras na palma da mão. Ler textos é uma atividade que já ocupa neles um segundo plano, ofuscada por jogos eletrônicos, exibição de videos, entretenimentos, passatempos e distrações de toda sorte. Estes gadgets têm servido, sobretudo, como uma ferramenta para interação nas redes sociais, onde os indivíduos entregam-se a esta verdadeira febre contemporânea do compartilhamento de conteúdos, visando assumir seu papel, relevante ou não, na chamada Cultura Participatória*.
*De Participatory culture. Cultura onde os individuos participam na criação, veiculação ou compartilhamento de conteúdos ( mídia , cultura, etc) através da internet.
No documentário ficcional “Children’s Video Collective”, de 1995, um menino diz solemente para a câmera:
“No futuro, as crianças não existirão mais. Como categoria social nós simplesmente nos tornaremos irrelevantes. Minha geração é provavelmente a última geração de crianças. Ou melhor, a última geração a ter a experiência da infância. Isso não significa necessariamente que chegou o momento de guardar as coisas da infância. Ao contrário, isso pode significar que o uso das coisas da infância talvez acabe sendo prolongado indefinidamente, até a morte”
A citação do menino é relatada logo nas primeiras linhas do ensaio introdutório do catálogo da exposição “Century of the Child: growing by design”, apresentada pelo Museu de Arte Moderna – MOMA, de Nova York, um esforço em larga escala para investigar as intercessões entre design e infância. O texto é da curadora da mostra, Juliet Kinchin, que responde pelo departamento de design e architetura daquela instituição.
Um projeto ambicioso em escala e escopo, a exposição do MOMA apresentou a tese geral que, de 1900 a 2000, inventamos e construímos um mundo especificamente voltado a atender às crianças, suas necessidades presumidas, indo desde o design de seus quartos de dormir e das suas salas de aula, passando também pela forma de vesti-las, os livros e a propaganda à elas destinados, os objetos que lhes serviriam de suporte na hora de aprender, de brincar e de se divertir.
“Century of the Child” foi uma mostra cuja concepção teve como ponto de partida um importante livro-manifesto de mesmo nome, escrito pela teórica sueca Ellen Key no ano de 1900. Como observou a autora há mais de cem anos, “o desenvolvimento da criança responde – em escala de miniatura – às questões sobre o desenvolvimento da humanidade como um todo”, o que explica o fato delas estarem há muito no foco do nosso pensamento utópico, inspirando-nos a sonhar e mesmo exigir um futuro diferente, melhor e mais otimista.
Ainda em “Century of the Child”, o livro, Ellen Key defende que, em nosso século, devemos dotar o desenvolvimento das nossas crianças com novos métodos educacionais, e, neste processo, em grande medida, os livros ilustrados vão assumir um papel significativo. Aquela declaração, registrada logo no despertar do século XX foi, de certa maneira, profética, pois ainda não havia se passado muito tempo desde que as crianças deixaram de ser vistas como pequenos adultos e, igualmente, a própria concepção de livro infantil havia acompanhado somente há poucas décadas aquela fundamental mudanca de paradigma.
A espécie humana segue aprendendo através de metáforas e histórias. E nas crianças, tábulas rasas, estas narrativas além de propiciar um estado de disposição em aprender e adensar sua compreensão do mundo, são também oportunidades para o fortalecimento das relações de proximidade entre as gerações, entre quem conta e quem ouve.